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Problematizando a escolha vocacional: atentando a histórias, acontecimentos, imagens, elementos (idioma: portugués)

Problematizando a escolha vocacional:

atentando a histórias, acontecimentos, imagens, elementos...

 

Beatriz Mazzolini

 

 O que você vai ser quando crescer?

Para problematizar a respeito da difícil tarefa relacionada a que vocação/profissão escolher, colocada diante das pessoas durante determinada fase de seu percurso de vida, alguns elementos da história de Winnicott que podem ajudar a nos situarmos na complexidade do tema foram selecionados para compreendê-lo.

Em outubro de 1970, em uma palestra para médicos e enfermeiros, Winnicott (1996) disse “... deve ficar claro que sinto orgulho em ser membro dessa categoria desde que me diplomei, há cinquenta anos. Nunca quis ser nada além de médico” (p. 88).

Para algumas pessoas parece mais fácil fazer a escolha profissional, como no caso da história de Winnicott, mas será que foi fácil assim? O que determinaria esta menor dificuldade para decidir o que estudar? Certamente não contamos com uma resposta única e sim com possibilidades de olhar para os acontecimentos e movimentar ideias/versões.

 

“Nunca quis ser nada além de...”

Poder fazer a afirmação “nunca quis ser nada além de médico”, de certa forma passa certeza e confiança, assinalando que esta vocação sempre esteve presente na vida da pessoa. Hoje se sabe o quanto Winnicott foi bem sucedido em sua escolha, pois foi um excelente pediatra e psicanalista, deixando vasta obra que comprova isso, auxiliando-nos a pensar como se dá e como se pode promover o desenvolvimento do ser humano.

Para outras pessoas uma certeza como esta pode mobilizar sentimentos de insegurança, de cobrança - como não saber o que se quer ser? A experiência tem mostrado que esta situação é a mais comum - as pessoas não sabem o que fazer -, principalmente os adolescentes quando se veem diante desse questionamento.   

          Como Winnicott chegou a tal certeza? Como uma pessoa pode chegar à sua escolha vocacional real/ideal? Como se manter durante longo tempo exercendo uma única profissão com qualidade? Como ser alguém criativo, autêntico e realizado na prática profissional?

Questões que todo profissional conscientemente ou inconscientemente se coloca, pois as questões vinculadas à escolha da vocação não precisam ser dirigidas apenas ao adolescente na época em que se depara com ela, e sim a qualquer pessoa, que está às voltas com um trabalho profissional.

 

A perspectiva das Autorias vocacionais

Fernández (2013) em sua perspectiva das Autorias vocacionais assinalou que vamos integrando, ao longo da vida, os elementos que compõem nossa escolha vocacional e, segundo ela:

 

Múltiplos “fios” nossos ancestrais nos contribuem. Com eles vamos tecendo a eleição vocacional.

Não costumamos perguntar quem contribuiu com os fios. Vamos tecendo... e um dia, algum acontecimento ou uma simples imagem repentinamente nos revela um dos fios iniciais... que ainda estamos utilizando para continuar construindo a rede vocacional que nos sustenta.

A “revelação-construção” da que falo, dura só uns instantes, se não a “agarramos” rápido pode perder-se. Às vezes a tomamos e com ela construímos novos sentidos que vão alimentando nossa tarefa atual. (pp. 3-4)

 

 

            A vocação começa a ser gestada desde o início da vida do ser humano e, qualquer experiência que traga sentido, poderá contribuir com fios que ajudarão a tecer a decisão por esta ou aquela profissão, como possibilidade de escolha no futuro.

 

Tecendo uma escolha

Aproveitando fragmentos da história vocacional de Winnicott estabeleci uma relação entre o escrito de Fernández a respeito das Autorias vocacionais e alguns elementos dessa história narrados por Clare Winnicott (1994), sua segunda esposa, em uma passagem biográfica do marido em que ele conta como escolheu, por volta dos 15 anos, estudar Medicina:

 

Foi quando Donald se achava no hospital da escola, por haver quebrado a clavícula no campo de esportes, que consolidou na própria mente a ideia de tornar-se médico. Referindo-se a essa época, amiúde dizia: “Pude ver que, pelo resto da minha vida, se me machucasse ou ficasse doente, teria de depender de médicos; a única saída para essa posição era tornar-me médico eu próprio e desde então a ideia, como uma proposição real, esteve sempre em minha mente, embora soubesse que papai esperava que eu ingressasse em seu florescente negócio e acabasse por assumi-lo de suas mãos.” (p. 7)

         

Viver essa experiência no ambiente hospitalar foi um fato marcante, certamente foi um dos fios que o ajudaram a tecer o que mais tarde seria a sua escolha – aquele acontecimento revelou um dos fios que comporiam a rede vocacional que sustentaria, anos depois, tudo o que foi capaz de construir como clínico, teórico e pensador humanista.

Um pouco mais dessa história mostrou que o pai de Winnicott queria que ele trabalhasse nos negócios da família, mas o amadurecimento de seu senso saudável de independência – tema que estudou com intensidade na vida profissional - levou-o a escolher, ele mesmo, a profissão que queria seguir.

As coisas não foram tão simples como apareceram na afirmação da palestra. Khar (1996) narrou no retrato biográfico que fez de Winnicott que ele, ao perguntar ao diretor da escola se poderia sair-se bem como médico ouviu que talvez não fosse brilhante, mas poderia dar certo, caso fizesse medicina. Khar comentou que “Felizmente, esta falta de estímulo não desencorajou Winnicott.” (p. 31), que acabou seguindo a profissão de médico e foi muito bem sucedido, “brilhante” mesmo.

Outra passagem, também relatada por Clare (1994), fez menção a uma carta escrita por ele em resposta ao amigo Stanley - um colega de escola um ano mais adiantado. Stanley sabia do interesse de Winnicott pelo estudo da medicina e também da não aceitação de seu pai de outra coisa que não fossem os negócios familiares e se comprometeu a ajudá-lo a conversar e convencer o pai sobre isso.

Na carta Winnicott mencionou para o amigo um passeio que fez com o pai em que ambos estavam dispostos a falar de suas intenções para a futura carreira dele, e escreveu:

 

... eu estava certo de que ele queria, mais do que qualquer outra coisa, que eu ingressasse em seu negócio. Dessa maneira, mais uma vez conscientemente e não, encontrei todos os argumentos em favor da ideia e não pensei muito a respeito de qualquer outra coisa, a fim de não ficar decepcionado. Assim, ensinei-me a prezar a vida comercial com todo o meu coração e pretendi ingressar nela e agradar a meu pai e a mim mesmo (p. 8).

 

Winnicott neste fragmento mostrou certo conformismo e obediência à escolha paterna e, em outro trecho da mesma carta, continuou:

 

... – no mesmo grau em que Algy queria ir para um mosteiro – eu quis por muitíssimo tempo ser médico, mas sempre tive medo de que meu pai não o quisesse, de maneira que nunca mencionei o assunto e – parecido com Algy – cheguei mesmo a sentir repulsa pelo pensamento. (p. 8).

 

Algy era companheiro de escola de Winnicott e Stanley e, parece, que os três, juntos, de alguma forma trocavam ideias a respeito de suas intenções profissionais – criavam espaços de reflexão que serviam como superfícies para elaborar e fortalecer as escolhas de cada um – experiências que permitiram tecer alguns fios em conjunto.

 

Ampliando possibilidades de escolha

Ao apresentar o enfoque Autorias vocacionais, como alternativa à promoção de saúde/desenvolvimento no trabalho, Fernández (2013) assinala como tarefa psíquica importante, para o adolescente e para o adulto profissional, a possibilidade de criar/inventar múltiplas biografias de si mesmo. É preciso ressaltar que, sendo um enfoque psicopedagógico, o processo de aprendizagem é parte da conquista/construção, pois “A aprendizagem supõe o reconhecimento de um processo construtivo do operar com o tempo que o sujeito realiza, construindo-se como ‘autobiógrafo’. A aprendizagem supõe um modo de situar-se diante do passado e do futuro.” (p. 55).

Para que haja a criação/invenção de si mesmo é necessário viver experiências que sustentem curiosidades/perguntas a respeito delas, ao mesmo tempo em que se possam encontrar outros humanos disponíveis que mantenham um diálogo vivo, trazendo sentido às experiências do passado e do presente.

Situar-se diante do passado e do futuro torna-se possível em espaços que oferecem superfícies de inscrição para que as pessoas possam colocar seus sonhos, projetos, desejos e singularidades em movimento. Nestes espaços pode-se experienciar uma das propostas utilizadas por Fernández – criar autobiografias de diferentes situações da própria vida. A fundamentação para isso veio do escritor argentino Borges, ao escrever:

 

Existem tantas autobiografias como relatos que eu faço de mim mesmo. Poderia escrever a autobiografia de meus erros, de meus ódios, de meus amores, de meus fracassos... Todas elas seriam verdadeiras mas algum leitor desprevenido poderia crer que se trata de diferentes pessoas... (Fernández, 2013, p. 55)

 

As palavras de Borges facilitam compreender a difícil passagem do ser humano pela vida, sempre paradoxal, às voltas com situações em que tem sucesso, outras em que fracassa, e outras em que fica em suspensão. Todas elas vividas pela mesma pessoa que tem como tarefa integrá-las. Relatar esses acontecimentos e em diferentes versões e poder jogar/brincar com eles amplia as possibilidades de viver de modo mais criativo e realizador.

Fernández (2001) em outra oportunidade definiu que “Aprender é apropriar-se da linguagem; é historiar-se, recordar o passado para despertar-se ao futuro; é deixar-se surpreender pelo já conhecido. Aprender é reconhecer-se, admitir-se. Crer e criar. Arriscar-se a fazer dos sonhos textos visíveis e possíveis.” (p. 36). É fundamental que cada pessoa possa encontrar espaço e tempo para apropriar-se de uma linguagem - um dos muitos instrumentos que pode auxiliá-la a reescrever a própria história ou as múltiplas biografias de si mesma. Encontrar meios adequados que facilitem o historizar-se, ajudando a traduzir sonhos em projetos de vida, linguagens simbólicas em linguagens verbais.

Assim, o adolescente – e o adulto profissional - necessita jogar/brincar com a construção de um passado, como assinalou Alaugnier (1991), além de elaborar lutos pela infância perdida; jogar/brincar com as figuras identificatórias, ajudando a compor a personalidade; e jogar/brincar com as múltiplas biografias, como escreveu Borges, ampliando as possibilidades de um viver criativo.

As diferentes tarefas funcionam como meios de aprofundar o conhecimento que se constrói a respeito de si e, com elas, o encontro com possibilidades de se enriquecer como pessoa/profissional. “Resignificando nossas práticas/percursos e reconstruindo nossas próprias eleições vocacionais, abriremos a possibilidade para que nossos atendidos possam fazê-lo” (Fernández, 2013, p. 3). É fundamental que o profissional faça por si mesmo o que faz pela pessoa que o procura. Ao estar sempre envolvido com o desenvolvimento de si mesmo promove o desenvolvimento do outro, pois é, ele mesmo, o seu principal instrumento de trabalho.

 

Tecendo por meio da imaginação criativa

Na literatura brasileira a obra de Moacyr Scliar talvez possa ilustrar o que Fernández trouxe como proposta interventiva. Moacyr Scliar, escritor, médico, teve uma vida interessante, exercendo com dedicação e competência as duas profissões, que se complementaram mutuamente, ao longo de sua vida. Segundo ele, “A medicina é um mergulho na condição humana. A literatura também”, o que comprova a profundidade de seu trabalho e o merecimento de todos os prêmios que ganhou como médico e escritor. Seu primeiro livro foi Histórias de um médico em formação, de 1962 – ano em que se formou médico, e depois muitos se sucederam a este, sendo sua obra literária muito vasta.

Scliar utilizou seu talento inventivo para narrar lacunas encontradas na infância do grande escritor brasileiro Machado de Assis. Recorreu à sua criatividade associando-a a informações que conhecia sobre o escritor, e que poderiam ter relação com sua vocação. Pouco se sabe a respeito da vida de Machado de Assis antes que ele começasse a escrever por volta de seus 16 anos de idade. Ganhou o apelido de bruxo do Cosme Velho, quando se mudou para um sobrado em um bairro da zona sul do Rio de Janeiro que tinha esse nome.

Scliar (2007) propôs-se a narrar uma possível versão a respeito da escolha vocacional de Machado de Assis e, não a conhecendo por meio de nenhuma biografia, permitiu-se contá-la como escritor. Na história O Menino e o Bruxo criou/inventou uma passagem ficcional biográfica para Joaquim Maria Machado de Assis, um menino pobre, mulato, feio, gago, epilético e vendedor de doces nas ruas do Rio de Janeiro - para ajudar a madrasta com as despesas de casa. Em sua narrativa, o menino gostava de escrever como “resultado de um impulso muito forte” (p. 23) e, na véspera de Natal, cansado de não vender nada, sem comer e debaixo de um calor muito forte, parou diante de uma casa para oferecer os doces.

Um vendedor de água que passava por ali disse ser a casa do “Bruxo do Cosme Velho”. O menino Joaquim Maria era cheio de ideias e pensou em pedir várias coisas ao bruxo, entre elas que o curasse da gagueira e das crises que o deixavam fora da realidade (epilepsia). Pediria que “lhe desse aquele poder que têm os escritores de expressar as emoções, os sentimentos, os pensamentos através de palavras” (p. 31).

O diálogo entre o velho, que o acolhe ao vê-lo caído em frente à sua casa, e o menino que acorda sob seus cuidados após ter perdido a consciência, revela a rica imaginação de Scliar para compor o fragmento biográfico de Machado, bem como o reencontro deles, narrado em novo diálogo ao final do livro, em que o velho disse “o menino, Joaquim Maria, é pai do homem. Eu só poderei existir se você prosseguir a sua trajetória. E você prosseguirá na sua trajetória. O seu destino está sendo traçado, não por um bruxo, mas por você mesmo” (p. 78).

A frase de autoria de Machado de Assis que ficou célebre “o menino é pai do homem” (p. 90) apareceu em outros momentos da narrativa. Para o escritor Scliar, foi por meio do encontro imaginário do menino Machado de Assis com um bruxo - o próprio Machado no futuro -, que ele “encontrou” a vocação que o consagraria para sempre na vida adulta.

As tarefas psíquicas assinaladas por Fernández (2013) de construir-se um passado, de identificar-se com figuras importantes da cultura, de historizar-se e de inventar múltiplas autobiografias, aliadas ao conceito psicanalítico da transferência, permitem que se jogue/brinque com algumas ideias. Assim, o escritor Scliar, por meio da história de seu ídolo Machado de Assis, pôde escrever de modo indireto, uma das muitas biografias de si mesmo. Pode-se pensar que em sua escrita ele é e não é Machado de Assis – paradoxo importante para ele, o de ser e não ser o escritor Scliar, por ser também o médico.

“Usamos a imaginação para completar as lacunas da vida, prover explicações para coisas que não entendemos, traçar caminhos e entender o passado.” (Scliar, 1980, site oficial do autor www.scliar.org). Palavras que permitem encontrar alguns elementos que ajudam a pensar o uso que fez da ficção criada para Machado de Assis, para falar de sua própria ficção/história - como propõe Fernández nos jogos psicodramáticos.

O tempo passou e o presente mostra que a escolha da carreira de Winnicott e Scliar foi bem sucedida, sendo reconhecidos como profissionais capazes em seus campos de atuação e tendo destaque em suas especialidades. Winnicott por meio de uma situação real – não sem sofrimento - teve a certeza do que queria seguir profissionalmente e se sentiu realizado com ela. O escritor Scliar, por meio da imaginação, baseada na lacuna da vida de Machado criou uma história que expressou o talento literário de inegável fertilidade dos dois – uma vez que Scliar fez parceria com o que era conhecido da vida de Machado, mesclando em sua obra realidade e ficção da vida de ambos.

 

Buscando espaços de confiança/superfícies de inscrição

Nem sempre é fácil tecer os fios mais importantes e escolher a profissão, como pareceu ter sido para Winnicott. O adolescente Winnicott deparou-se com o desencontro entre o seu desejo – ser médico - e o desejo de seu pai – ser empresário. Isso assinala a necessidade de se considerar o quanto a família pode servir como superfície de inscrição para jogar com escolhas, participando de modo a favorecer ou dificultar a decisão vocacional.

Winnicott pôde compartilhar com colegas de escola seu interesse pela profissão médica que desagradava seu pai. Ao abrir-se com eles fortaleceu-se para continuar lutando pelo que queria, encontrou espaço – de confiança - para falar de si e recebeu apoio para amadurecer seu desejo/projeto. A parceria dos amigos acompanhou-o, não esteve sozinho ao se deparar com o pai, pois as lembranças das conversas no quarto do colégio seguiram com ele. Foi capaz de expressar sua vontade real para o pai e foi compreendido em sua decisão.

Buscar fios que possam ajudar a tecer a escolha vocacional implica em encontrar pessoas e espaços – de confiança - disponíveis que possam servir como coautores e como áreas transicionais dessa busca e encontro. O trabalho de historizar-se permite recuperar e ampliar experiências, o que é fundamental nos dias de hoje, em que o tempo passa de forma vertiginosa e rouba a possibilidade de “curtir” e registrar os momentos vividos para recordar depois.

Também não é fácil criar/inventar fios que possam levar meninos e meninas a encontrar subjetividade na objetividade de uma proposta que joga com o futuro e o passado ao mesmo tempo. É preciso encontrar espaços de confiança, superfícies de apoio onde determinadas inscrições possam ser feitas e esses fios possam ser recuperados. A perspectiva das Autorias vocacionais propicia essas superfícies de inscrição por meio de várias propostas e, entre elas, essa de criar/inventar novas biografias para a própria história.

 

Escolha vocacional em devir

O sucesso futuro de uma orientação/escolha vocacional feita no presente não pode ser garantido, pois a profissão é busca, é devir. A falta de certeza não impede a escolha, pois o ser humano é movimento e está sujeito a encontrar, durante seu caminho, elementos que permitam que ele possa transformar sua escolha ou reafirmá-la.

Na perspectiva de Fernández, as múltiplas autobiografias a serem escritas/inventadas da vida de cada um, diante de diferentes situações propostas seriam, a meu ver, semelhantes às muitas configurações de um caleidoscópio. Gosto de usar a imagem do caleidoscópio como algo que ajuda a pensar a personalidade do ser humano - diferentes configurações possíveis, dos mesmos elementos, quando colocados em movimento.

O fato de sermos autobiógrafos de nossa vida, como nos legou Borges, e de podermos compor tantas biografias como relatos que fazemos de nós mesmos ampliam nossas “configurações pessoais”. Segundo Borges, “Poderia escrever a autobiografia de meus erros, de meus ódios, de meus amores, de meus fracassos... Todas elas seriam verdadeiras mas algum leitor desprevenido poderia crer que se trata de diferentes pessoas...” e isso é possível para qualquer pessoa que encontre tempo, espaço e pessoas disponíveis para escutar e facilitar transformações necessárias.

Construir múltiplas biografias promove alternativas às possibilidades de resignificação das diferentes situações enfrentadas na vida – fáceis e difíceis. Trata-se de um modo de intervir no devir de alguém que respeita sua singularidade, incentiva seu idioma pessoal e promove sua autoria de pensamento. De posse de sua própria narrativa, a pessoa poderá modificá-la, se quiser, acrescentar coisas, tirar ou escrever outra, seguindo uma nova consigna ou nova recordação/descoberta.

Os exemplos citados por Fernández (2013) – Autobiografia de minhas escolhas, de minhas decisões equivocadas, de meus acertos, de meus momentos conflitivos e de meus momentos felizes, de meus desejos não satisfeitos ou de meus projetos não cumpridos - ilustram a abertura que esse tipo de enfoque promove - uma personalidade mais criativa/autora.

 

Encontrando fios e reescrevendo histórias

Ao jogar/brincar hoje com minha escolha vocacional, percebo que ela passou por fios antes nem imaginados - esteve restrita ao momento de minha decisão: graduar-me em Psicologia – até que a coloquei em movimento, permitindo que ela ganhasse novas histórias/autobiografias narradas por mim.

Após compartilhar experiências com outras pessoas e por posicionar-me muitos anos depois daquela decisão pude voltar minha atenção ao passado e deter-me a detalhes, a desdobramentos, a reconhecer heranças, a valorizar acontecimentos, a ater-me a imagens guardadas/recordadas e comecei a reescrever capítulos da minha história, com elementos subjetivos/objetivos da minha escolha profissional.

Terceira filha a escolher a profissão, tendo um irmão estudante de engenharia e uma irmã estudante de pedagogia, poderia cursar o que quisesse desde que eu gostasse, então escolhi psicologia, porque eu gostava. Brinquei muitas vezes de ser médica, advogada, professora, bailarina, dona de casa...

Conheci a psicologia pelas aulas de uma professora de filosofia no colegial, mas não me recordo ao certo seu nome, talvez professora Cristina – uma mulher que chamou minha atenção por sua “esquisitice” e pelas coisas que falava sobre o ser humano. O colégio promoveu uma orientação vocacional feita por uma psicóloga e, ao final, lá estava a psicologia sendo indicada para mim – isso é o que me recordo.

A psicologia é o tipo de formação que me encanta e me envolve até hoje e posso afirmar diferente e igual à Winnicott “Nunca me vi exercendo outra profissão além de ser/sendo psicóloga”.

Os fios que fui tecendo mostraram que de minha mãe herdei a força de trabalho das mulheres da família que optaram por estudar e trabalhar com o desenvolvimento humano na área da educação, todas escolheram ser professoras, gostavam muito de ler, de estudar e de conversar.

De meu pai herdei o espírito de determinação - lutar pelo que se quer mesmo -, o amor à saúde do corpo/da mente, pois estudou educação física e exerceu sua carreira com muita dedicação.

Dos amigos e amigas - tal como com Stanley e Algy com Winnicott -, contei com espaços em que trocávamos ideias a respeito de nossos projetos profissionais, espaços em que tive o reconhecimento de ser boa ouvinte para as questões pessoais e de aprendizagem, alguém confiável para guardar segredos, alguém que ajudava a encontrar soluções para dificuldades pessoais e para dificuldades escolares, alguém que tinha esperança no viver, mesmo diante das adversidades.

Ao estudar a perspectiva Autorias vocacionais, proposta por Fernández e Cruz, senti vontade de escrever/criar a biografia de minhas especializações profissionais, iniciada ao finalizar a graduação em Psicologia. Posso começar a pesquisa pelos certificados arquivados em pastas, percorrendo os cursos que fiz, e o final ficará em aberto, pois meu processo de formação é contínuo e sei que coisas interessantes ainda aparecerão para estudar. Vou dedicar algum tempo para recordar as escolhas feitas, o que vivia na época, para que fiz a especialização e como contribuiu para minha formação, bem como os ganhos para a profissão. A especialização em psicopedagogia terá o destaque merecido.

O título poderia ser O caleidoscópio profissional e as superfícies de inscrição. Uma escrita de meu acervo pessoal que reafirmará, mais uma vez, a alegria que sinto por poder fazer o que faço – um belo trabalho realizado e um longo trabalho pela frente.

Como escolher a vocação/profissão?

Como assinalado anteriormente, muitos são os fios que vão tecendo, desde o nascimento os elementos que comporão a escolha profissional de alguém.

A influência do ambiente familiar – impondo ou respeitando uma carreira previamente escolhida -, a contribuição das pessoas que fazem parte da escola encorajando ou trocando ideias - profissionais ou colegas próximos, que se relacionam com a pessoa e vão apresentando seus diferentes modos de conviver com o trabalho, os diferentes meios de comunicação, os acontecimentos fortuitos, a experiências marcantes, fatos inesperados, enfim, momentos que podem durar instantes, como assinalou Fernández e precisam ser agarrados para que possam ajudar a compor a complexa rede da escolha vocacional.

O que pode facilitar responder à questão O que você vai ser quando crescer?

Muitas coisas que já conhecemos e outras que ainda temos que buscar. Dentre as que conhecemos a possibilidade de se oferecer às crianças/pessoas espaços de autoria de pensamento, situações em que seja possível fazer escolhas, trabalhar de forma lúdica os aspectos importantes da vida, historizar-se, inventar autobiografias, trazer o humor para o cotidiano... poder viver e de forma criativa.

Nenhuma escolha é única, nem fechada, muito menos é para sempre e nem se realiza sem envolver os outros. Ao finalizar, só poderia fazê-lo com Fernández (2013) “Um projeto vocacional se constrói subjetiva e historicamente em integração com os outros e em movimento”. (p. 8)

 

Referenciais

Aulagnier, Piera. Construirse un passado. Revista de Psicoanálisis de APdeBA, volumen XIII, nº3, año 1991.

Fernández, Alícia & Cruz, Jorge Gonçalves da. Curso à distância Autorias vocacionais. EPsiBA, 2013.

Khar, Brett. D.W.Winnicott: um retrato biográfico. Rio de Janeiro: Exodus, 1996.

Scliar, Moacyr J. O menino e o bruxo. São Paulo: Ática, 2007.

Winnicott, Clare. In D. W. W.: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.

Winnicott, Donald Woods. (1970/1996) A cura. In Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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