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De criança a adulto – o adolescente em transição - Idioma: portugués

De criança a adulto – o adolescente em transição

 

Beatriz Mazzolini – São Paulo

 

Introdução

 

Está naquela idade incerta e duvidosa,

Que não é dia claro e já é o alvorecer;

Entreaberto botão, entrefechada rosa,

Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Machado de Assis (1994)

 

          Ao entrar na fase da puberdade e adolescência – dos 11 aos 20 anos, aproximadamente - é comum aos familiares e à sociedade dizerem aos jovens “você já é grande demais para isso” ou “você ainda não tem idade para isso”. E, na categoria isso, se inclui desde regras de boa educação, andar sozinho na rua, trabalhar fixo, até consumo de bebida alcoólica, entre outras observações/advertências. Estar nessa posição de adolescente é não ser mais criança e também não ser ainda adulto, é estar em transição. 

          Ser/estar adolescente implica uma série de situações que se entrelaçam em uma rede complexa de relações entre o seu si mesmo, entre pessoas próximas e distantes, entre coisas conhecidas e outras ainda a conhecer.

          Fase de tensão em que a fenomenologia biopsicossocial do adolescente exige compreensão a cada nova mudança e tempo/espaço para que os “ajustes” necessários possam ser feitos e o adolescente consiga chegar à fase adulta com criatividade, autoria e ética.

          Transitar de ser criança em direção a ser adulto não acontece de forma linear e nem preditiva, trata-se de um processo que requer a realização de tarefas psíquicas que demandam tempo, espaço e confiança em relacionamentos inter-humanos.

          Este escrito/ensaio tem como proposta problematizar a adolescência por meio de um olhar mais profundo para uma das tarefas importantes que precisam ser realizadas pelo adolescente: a tarefa de narrar-se por meio de uma história pessoal, ou seja, a possibilidade de “construir-se um passado para projetar-se a um futuro”. (Fernández, 2014a, p. 12).

          A Psicopedagogia de Fernández e Cruz (2014) traz os fundamentos para a discussão, juntamente com escritos de Winnicott e de outros autores que abordam o tema da adolescência. Áreas como literatura e cinema, desde a perspectiva do adolescente, ajudam a ilustrar de maneira enriquecedora o assunto, que está bem longe de se esgotar.

          Ao questionar-se o porquê de se dedicar a pensar a adolescência, Fernández (2014a) afirma, dentre outras coisas, “Quiçá porque os adolescentes impõem a gritos seu direito a rir e também a chorar e necessitam que os adultos saibam encontrar a alegria, além deles, em nossa própria vida.” (p. 3). Acredito que é em busca dessa alegria de viver que estudamos e pensamos a vida - a nossa e a dos outros que temos a responsabilidade de cuidar.

          Para uma compreensão aberta do que é essa fase da vida é preciso que se reconheça a adolescência “como um tempo essencialmente criativo” (Fernández, 2014a, p. 4), como construção social, e não mais só como adaptação ao ambiente.

 

Tarefas psíquicas da adolescência

          Tarefa psíquica é o modo como o psiquismo trabalha para enfrentar situações adversas, traumáticas ou enigmáticas, tais como um processo de perda/luto, um sonho/pesadelo, um desejo/vontade estranha, entre outras situações.

          Para Fernández (2014a), “Adolescer é produzir uma série de trabalhos de construção que permitem ao púbere incluir-se em uma “filiação humana social”, que o separa e o relaciona com a filiação outorgada por seus progenitores.” (p. 15). A criança inicialmente percebe mais sua relação com os familiares, embora já pertença a uma sociedade, mas é na adolescência que se sente filiada à ordem humana social ao dar-lhe um sentido mais pessoal. O meio ambiente em que vive amplia-se nessa fase e é preciso observar se sua influência facilita ou dificulta o processo de amadurecimento do adolescente, da elaboração psíquica de suas tarefas e não só do seu desenvolvimento físico.

          As tarefas psíquicas do adolescente apresentadas por Fernández e Cruz (2014) são: a construção do nós, construir-se um passado para projetar-se ao futuro, do brincar ao trabalhar, da casa à rua e reconstrução e resignificação das primeiras aprendizagens (aprendizagens paradigmáticas).[1]

          Escolhi uma delas para aprofundar minha compreensão e estudo, uma vez que abordar todas seria impossível neste momento. A escolha foi aleatória, pois a meu ver todas as tarefas são importantes e demandam ainda muita pesquisa. Vale ressaltar que todas acontecem ao mesmo tempo, são dinâmicas, são processo, variam de acordo com a cultura em que se vive, variam de acordo com o tempo e com as conquistas humanas (ciência, tecnologia, artes), são únicas para cada adolescente - o que as torna ricas e fonte de nossa curiosidade.

Destaquei a tarefa construir-se um passado para projetar-se ao futuro, mas poderia ter escolhido a construção do nós, do brincar ao trabalhar, da casa à rua, ou a reconstrução e resignificação das primeiras aprendizagens paradigmáticas[2], temas que igualmente me encantam.

 

Construir-se um passado para projetar-se a um futuro

          Essas tarefas psíquicas citadas anteriormente ampliam a ideia que tradicionalmente se tinha da adolescência como um tempo de lutos – do corpo da infância, dos pais da infância etc.

Ao deparar-se com a obra de Aulagnier, Fernández pôde pensar a adolescência a partir de seus potenciais de transformação e criação, o que vem ao encontro de seu modo psicopedagógico de pensar, ou seja, promover a atividade pensante e as autorias em lugar de focar nos déficits e nas hiperatividades. As ideias de Aulagnier trazem fundamentos para a Psicopedagogia clínica, no que se refere a pensar e tratar o “Aprender como um modo de re-situar-se diante do passado.” (Fernández, 2014a, p. 21).

Para ambas construir-se um passado é uma tarefa reorganizadora própria da adolescência. Trata-se de um trabalho em que se põe em memória um tempo passado que estava definitivamente perdido e, com esse tipo de movimento pessoal, pode-se continuar existindo psiquicamente. Trata-se de uma “Autobiografia jamais terminada na qual os capítulos que se acreditava definitivamente acabados podem prestar-se a modificações. Trabalho de construção-reconstrução permanente...” (Aulagnier, citado por Fernández, p. 21).

Uma elaboração como esta permite que o adolescente/a pessoa tenha a certeza de que é o autor de uma história que é sua, podendo modificá-la de acordo com as novas experiências vividas, sem colocar em risco a singularidade da recordação que dá sentido para si mesmo. Tarefa fundamental que permite que o passado perdido exista psiquicamente na forma de uma narrativa, que conta a história guardada na memória do adolescente – o antes é agora, o passado liga-se ao presente como construção que é causa e fonte de seu ser.

A Psicopedagogia cria espaços subjetivos/objetivos de autorias de pensamento em que a tarefa de construir-se uma passado é possível, por meio de propostas lúdicas que convidam a pessoa a visitar/revisitar o passado e abrem a oportunidade de recordação. Por exemplo, propor ao grupo adolescente que “pense em como brincava na hora do recreio quando tinha seis anos”. Após encontrar uma cena e revivê-la, esta recordação é narrada às outras pessoas do grupo. Essa experiência de recordar, poder voltar ao passado e narrar a outros é o canal para a abertura do campo da autoria de pensamento, fundamental para a criatividade e autoria pessoais. 

          Outro exemplo interessante é a “Linha de vida das aprendizagens” (Fernández, 2014a, p. 23), uma proposta em que se pede às pessoas que “desenhem cenas disponíveis na lembrança, cenas em que se está aprendendo algo importante”. Solicita-se aos participantes que coloquem títulos para nomear essas recordações. O relato das experiências é rico e variado e é potencializador de realizações no tempo presente. Não é fácil viver/reviver experiências passadas, principalmente se deixaram marcas doloridas, por isso é necessário que se crie um espaço de confiança para que as recordações possam emergir e ajudar na tarefa da construção de um passado.

 

 

 

A adolescência e os estudos de Winnicott

          Para Winnicott (1964) “A palavra ‘puberdade’ descreve um estágio do processo físico de amadurecimento e a palavra adolescência é o estágio de tornar-se adulto através do crescimento emocional” (p. 249) – a possibilidade de realização das tarefas psíquicas assinaladas por Aulagnier e Fernández.

Pode-se considerar que puberdade relaciona-se ao desenvolvimento biológico da criança/púbere e adolescência relaciona-se ao seu desenvolvimento emocional/socioafetivo a caminho de sua fase como adulto humano. A adolescência é uma “época em que não existe solução imediata para qualquer problema” e, como não é doença, a cura tem a ver com “a passagem do tempo”. Alguns anos se passam e “o adolescente torna-se um adulto, isto é, torna-se capaz de identificar-se com figuras parentais e com a sociedade sem a adoção de falsas soluções.” (Winnicott, 1964, p. 249). O adolescente necessita de tempo/espaço para crescer, comunicação significativa para se descobrir, possibilidade de diálogo para ser ele mesmo na sociedade, ao invés de imposições autoritárias. 

Para este autor “a adolescência está sempre conosco” e isto não significa comentar a respeito de jovens reais difíceis de conviver, pois eles crescem e se tornam adultos, deixando de ser adolescentes. A adolescência se renova, pois “É sempre um conjunto novo de rapazes e moças que está fornecendo a variedade nova ou a fase nova de comportamento difícil.” (Winnicott, 1964, p. 249). Segundo ele “esta é uma fase que precisa ser efetivamente vivida, e é essencialmente uma fase de descoberta pessoal. Cada indivíduo vê-se engajado numa experiência viva, num problema do existir.” (Winnicott, 1961/1993, p. 115).

Como já assinalado antes, é uma fase de grande tensão, em que o adolescente é imaturo para determinadas situações e tem como características a rebeldia, o desafio e a dependência. Suas questões de vida giram em torno da afirmação “Eu sou” e da pergunta “Quem sou eu?”.

Diante de tal questionamento o adolescente pode colocar em movimento sua autodescoberta como resultado da crescente capacidade para sentir-se real. Ele luta para sentir-se real, para estabelecer uma identidade pessoal, para não assumir um papel pré-determinado e luta para passar pelo que necessita passar. Não é preciso poupá-lo de enfrentar desafios ou de realizar suas tarefas psíquicas, basta acompanhá-lo de perto e ele poderá tornar-se adulto.

 

Focando as tarefas psíquicas da adolescência

A construção do nós

          Do eu ao nós é um tema explorado pela literatura e pelo cinema. Muitas são as histórias de púberes solitários que começam a fazer parte de grupos em diferentes contextos escolar, esportivo, musical, de dança, de língua estrangeira, entre outros. O grupo se une em função de ideais comuns, seja ele vencer um jogo, um concurso musical, uma feira de ciências, entre outros.

Pensando nas histórias que li ou filmes que assisti, acredito que um filme que pode servir como ilustração da tarefa do eu ao nós é o Edukators (2004), do diretor alemão Hans Weingartner, em que três jovens invadem mansões - de forma criativa e sem violência -, revirando as coisas da casa, trocando móveis de lugar, e sem roubar nada. Expressam, com isso, a desigualdade social e a necessidade da construção de um nós menos excludente e mais socializado.

Pode-se perceber nesse filme a ideia colocada por Winnicott de que a adolescência se renova e o adolescente vira adulto - deixa de ser rebelde e contestador. Isso ficou evidenciado pelo homem rico sequestrado pelos protagonistas, que um dia foi adolescente e teve ideais iguais aos daqueles jovens.

Assim, “no ‘nós’ há uma dimensão de ‘ser com’, de se ir reconhecendo a ‘alteridade’ do outro. O nós não funciona em uma espécie de perda da diferença, senão em um reconhecimento da diferença no encontro com o outro como tal.” (Rodulfo citado por Fernández, 2014)

 

Construir-se um passado para projetar-se ao futuro

          O livro Eu sou Malala, de Malala Yousafzai (2013) exemplifica o que é realizar a construção de um passado para projetar-se ao futuro. Malala aos 17 anos é a mais jovem ganhadora do Prêmio Nobel da Paz (2014), desde que ele existe há 112 anos. Nasceu em Mingora, no distrito de Swat, no Paquistão. Ficou conhecida mundialmente em 2012, ao ser baleada por um terrorista talibã, quando voltava da escola.

Malala, como qualquer adolescente, viu-se diante da tarefa de ter de construir-se um passado e o fez por meio do registro de sua história, desde a origem de sua terra natal – “nos tempos antigos o Swat era um reino budista” (p. 25) -, de seu clã – a tribo pachtum Yousafzai -, até o dia em que sofreu o atentado, aos 15 anos (09/10/2012). Seu nome é uma homenagem à maior heroína do Afeganistão – Malalai de Maiwand.  

Relata sua infância na escola do pai Ziauddin Yousafzai, um defensor da luta pela educação das mulheres em seu país. A “Escola Khushal” foi fundada por ele antes de Malala nascer, e a filha destaca as ideias que compartilha com o pai - “a escolarização deve ser acessível a todos, ricos e pobres, meninos e meninas.” (p. 50). Seu objetivo “incentivar os alunos a pensar de forma independente e odiava a maneira como o sistema corrente recompensava a obediência em detrimento da curiosidade e da criatividade.” (p. 56).

“Nunca escondi minha vontade, quando deixei de querer ser médica para ser inventora ou política.” (Yousafzai, 2013, p. 15) – é o que ela afirma em relação à sua vocação. Malala vive em uma sociedade em que as meninas só podem ser professora ou médica, se quiserem trabalhar. Assinala que “só nos demos conta de quanto a educação é importante quando o Talibã tentou nos roubar esse direito. Frequentar a escola, ler, fazer nossos deveres de casa não era apenas um modo de passar o tempo. Era nosso futuro.” (p. 156).

O Talibã bombardeou escolas e casas fazendo muitas vítimas, entre elas mulheres, professores e policiais. Para Malala “O Talibã podia tomar nossas canetas e nossos livros, mas não podia impedir nossas mentes de pensar.” (p. 156).

Aos 11 anos de idade, um correspondente da BBC fez contato com o pai de Malala para que alguma mulher do Swat escrevesse um diário sobre a vida no regime Talibã, ela aceitou. Expressou seu ponto de vista em um blog da BBC (2009), relatando como as mulheres eram proibidas de estudar e como era a vida sob o regime Talibã. O blog, escrito por um jornalista, trazia os depoimentos dela sob o pseudônimo Gul Makai – nome de uma heroína do folclore pachtum. O diário chamou atenção para a situação do vale de Swat e “Comecei a entender que a caneta e as palavras podem ser muito mais poderosas do que metralhadoras, tanques ou helicópteros. Estávamos aprendendo a lutar. E a perceber como somos poderosos quando nos manifestamos.” (p. 167).

Malala deu narrativa e força ao seu passado, tornando-o presente e projetando seu futuro como defensora dos direitos da mulher a pode estudar e pensar. Malala construiu um passado para ela e uma história/biografia que permite que outras pessoas no mundo possam conhecer e refletir acerca de outra cultura diferente da ocidental. Malala vive nos tempos da tecnologia e o que acontece no Paquistão chega em tempo real no Brasil, na Argentina, na Inglaterra, nos Estados Unidos ou em qualquer país em que a internet esteja disponível.

“Entendendo o pensar como um desafio a autorizar-se a mudar, tanto a si mesmo como ao mundo a que pertencemos, já que não é possível pensar sem implicar-se.” (Fernández, 2014).

 

Do brincar ao trabalhar

          O livro e o filme de Alice no País das Maravilhas me fizeram pensar a respeito dessa tarefa psíquica. A história de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll é sempre lembrada quando o tema é crescimento, sendo considerada uma representante das questões da adolescência. No livro, a fala da menina mostra isso, quando ela conversa consigo mesma, após viver algumas aventuras estranhas:

 

Que dia atrapalhado o de hoje! E ainda ontem estava tudo tão normal! Será que me transformei durante a noite? Seria eu a mesma pessoa, quando me levantei hoje cedo? Parece que estava mesmo me sentindo um tanto diferente! Mas... se não sou mais eu mesma, então... quem sou eu? Ah! Essa é a grande questão! (Carroll, 1985, p. 15).

 

A menina cai de modo inesperado em um buraco profundo, vive constantes mudanças de tamanho, relaciona-se com animais que falam e com pessoas atípicas, e vivencia situações confusas e inusitadas. Só lhe resta perguntar-se, como assinalou Winnicott, Quem sou eu?

Acredito que a versão atual do filme dirigida por Tim Burton (2010), em que Alice tem 19 anos – final da adolescência – traz luz ao que pode acontecer na realização dessa tarefa de transitar do brincar ao trabalhar.  Alice tem que corresponder à expectativa de sua mãe e de amigos, mas sua observação atenta ao que a cerca e sua curiosidade a levam a seguir um coelho vestido com um casaco que corre apressado pelo jardim.

Alice corre atrás dele cai em um buraco profundo, fica de ponta cabeça e entra em um espaço em que pode viver de forma lúdica um sonho. Após a intensa experiência ela retorna e sente-se mais segura a respeito do que quer fazer em relação a seu futuro trabalho - retomar os negócios de seu pai já falecido. Alice apresenta suas ideias a um possível sócio que se surpreende com a coerência da jovem para os negócios. A história mostra o brincar como capaz de potencializar o amadurecimento para um trabalho adulto, ao invés da anterior submissão às escolhas dos outros.

“Às vezes é necessário olhar sem ver para ver além do que se mostra.” (Fernández, 2014).

 

Da casa à rua

Acredito que o livro O apanhador no campo de centeio do autor Jerome David Salinger (1951) é um livro que não só marca a literatura adolescente como também pode ilustrar a trajetória conturbada do jovem que se distancia de casa ou do colégio interno para crescer.

O protagonista é Holden Caulfield, um jovem americano de 16 anos que inicia sua história contando sobre “esse negócio de doido que me aconteceu no último Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento”. Holden é expulso da escola ao final do ano e, após brigar com seu colega de quarto por causa de uma menina, antecipa sua saída:

 

Decidi que ia sumir do Pencey, dar o fora naquela noite mesmo e tudo. Nada de esperar até quarta-feira. Não queria mais ficar zanzando por lá. O troço todo estava me deixando triste e solitário pra burro. Por isso resolvi ir para um hotel em Nova York – um hotelzinho barato e tudo – e ficar flanando até quarta-feira. Aí, na quarta-feira, ia para casa descansado e me sentindo cem por cento. Não queria ir para casa nem nada antes que tivessem recebido a notícia, digerido completamente tudo /.../ Era muito tarde para chamar um taxi ou coisa parecida, por isso fui mesmo a pé até a estação.

 

Pega o trem - “eu gosto de andar de trem, principalmente de noite, com as luzes acesas e as janelas tão escuras”. Holden chega a Nova York, pega um taxi - gostaria de ir para sua casa, abraçar a irmã Phoebe de 11 anos -, mas vai para um hotel. Não quer encarar os pais por causa da expulsão do colégio. Instala-se no hotel e vai até um lugar para beber. Acaba dançando com algumas mulheres. Volta ao hotel e, sem sono, resolve sair novamente. Pega outro taxi até a boate Ernie’s, local que costumava ir com o irmão mais velho D. B. Senta-se em uma mesa mal localizada “Mandei vir um uísque e soda, que é o drinque que eu prefiro se não tiver daiquiri. Qualquer sujeito com uns seis anos de idade pode pedir bebida alcoólica no Ernie’s”. Sente-se só “acabei me sentindo meio jogado fora, sentado ali sozinho. Não tinha nada para fazer senão fumar e beber”.

Encontra uma amiga do irmão que o convida a sentar-se com ela e o namorado, mas ele diz ter um encontro. “Voltei a pé para o hotel. Quarenta e um gloriosos quarteirões. Não que eu estivesse com vontade de andar nem nada. Foi mais porque não queria entrar e sair de outro taxi”. Lembra que “costumava subir para nosso apartamento pelas escadas. Doze andares”.

No hotel o ascensorista o induz a receber uma prostituta. Quando ela chega ele desiste do programa, mas não entram em acordo com o pagamento. O ascensorista e a mulher vão ao quarto dele para cobrar o que falta. Holden apanha dele, enquanto a mulher pega o dinheiro de sua carteira. Holden fica deprimido, tem ideias de estar morrendo e dorme.

Na manhã de domingo liga para uma amiga para irem ao cinema à tarde e deixa o hotel meio sem rumo, guardando suas malas “num armário da estação”. Vai até a Broadway e compra um disco raro para a irmã e entradas para o teatro, ao invés do cinema. Tenta encontrar a irmã no Parque ou no Museu de História Natural. Toma um taxi e vai encontrar a amiga Sally “Ela estava um estouro”. Pegam outro taxi e vão ao teatro, depois a um ringue de patinação e Holden convida Sally para fugir com ele. Ela não aceita, eles brigam e cada um vai para o seu lado. Holden vai ao cinema e depois encontra um amigo às dez horas da noite em um bar.  

Conversa com o amigo e bebe demais. O amigo vai embora e ele fica sozinho e bêbado. Vai a pé até o Central Park e pensa que pode morrer de pneumonia, pois está muito frio – fica imaginando como seria estar morto e a irmã menor vivendo esse sofrimento. Essa ideia deu-lhe forças para ir até a sua casa, encontrar a irmã sem que ninguém o visse. O novo ascensorista não o conhece, ele fala uma mentira e sobe ao seu andar “Tirei minha chave e abri a porta, bem de leve. Aí, com o maior cuidado e tudo, entrei e fechei a porta. Eu devia ter nascido ladrão”.

Dirige-se ao quarto da irmã e a acorda, conversam e ela deduz que ele foi expulso do colégio e que o pai vai matá-lo. Ele a conforta e diz que não gostava daquele colégio. Ela pergunta o que ele quer ser e ele responde

 

fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. /.../ Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo.

 

Vai até a sala e telefona para um professor Antolini, conta de sua expulsão e pede para dormir em sua casa, o professor consente. Volta ao quarto da irmã e eles dançam algumas músicas. Os pais chegam e ele esconde-se no armário. A mãe entra no quarto e pergunta por que a menina ainda não dormiu, ela diz que está sem sono. A mãe dá boa noite e deixa o quarto. Holden sai do armário, pede dinheiro emprestado à irmã. Ele chora ao se despedir dela.

Sai sem ser visto do prédio e vai para a casa do professor, que o acolhe e expressa preocupação em relação a seu comportamento. Holden está cansado e o professor fala e bebe demais. Holden dorme no sofá e acorda com a mão do professor fazendo um carinho em sua cabeça. Leva um susto e resolve ir embora. “Não tinha a menor ideia para onde ir. Não queria me meter em outro hotel e gastar todo o dinheiro da Phoebe. Afinal, fui andando até a Avenida Lexington e tomei o metrô para a Estação Grand Central”. Suas malas estão lá e pode dormir no banco do salão de espera. Dorme um pouco e pensa no professor. Encontra uma revista, lê uma reportagem sobre câncer e começa a pensar que vai morrer de câncer dali a dois meses. Vai até a lanchonete e toma café.

Começa a andar pela Quinta Avenida e sente medo de cair na rua e não ser encontrado por ninguém. Pede ao irmão morto a algum tempo de leucemia, que não o deixe desaparecer. Senta em um banco e faz planos de fugir – morar em uma cabana, arrumar um emprego. Pensa em despedir-se da irmã, vai até o colégio dela e escreve um bilhete combinando encontro no Museu. Holden dá uma volta pelo Museu e, depois de desmaiar no banheiro, sente-se melhor.

A irmã demora e traz consigo uma mala para ir com ele, isso o deixa com raiva e promete a ela que não vai mais embora. Holden não conta os detalhes de sua volta para casa, mas fala de um tratamento em uma clínica com o intuito de ajudá-lo a retornar à escola no próximo semestre.

Esta história ajuda a refletir acerca da ansiedade porque passa um jovem sozinho, longe da família, que não encontra motivação em uma escola que não o compreende. Ao enfrentar as incertezas de crescer fica exposto a toda espécie de imprevistos – taxistas nervosos, pessoas que se aproveitam de sua ingenuidade, a companhia do álcool e do cigarro e suas próprias fantasias de morte. A narrativa aborda, ainda, o aspecto psicótico contido na personalidade adolescente de um modo dramático. Assinala a importância da presença da família nesse momento em que o jovem precisa sair de casa em direção ao mundo, e de como pode ser difícil essa longa trajetória da casa à rua.

“Não se trata simplesmente de distanciar-se, separar-se do familiar, senão de tornar familiar algo do fora e situar-se um pouco alheio em relação ao que era familiar.” (Cruz, 2014)

 

Reconstrução e resignificação das primeiras aprendizagens (aprendizagens paradigmáticas)

Essa tarefa de reconstrução e resignificação das aprendizagens da infância podem ser ilustradas pelo livro O diário de Anne Frank escrito pela própria Anne Frank (1982/2011) dos 13 aos 15 anos de idade. Anne batizou seu diário de Kitty, a quem contou tudo o que viveu nesse tempo de reclusão, desde a descrição dos diferentes cômodos existentes no anexo até suas descobertas mais íntimas sobre sexo. Nele relata o cotidiano das pessoas que dividiam com ela e sua família o Anexo Secreto, localizado no andar de cima de uma fábrica em Amsterdã. Anne foi presa e levada para Auschwitz, morrendo em Bergen-Belsen, de tifo.

Sobre o diário, em 20 de junho de 1942 ela escreve:

 

Ter um diário é uma experiência estranha para uma pessoa como eu. Não somente porque nunca escrevi nada antes, mas também porque acho que mais tarde ninguém se interessará, nem mesmo eu, pelos pensamentos de uma garota de 13 anos. Bom, não faz mal. Tenho vontade de escrever e uma necessidade de desabafar tudo o que está preso em meu peito. (p. 18).

 

Nesse mesmo dia acrescenta “agora voltei ao ponto que me levou a escrever um diário: não tenho amigo.” (p. 19). Anne sente-se só, o que é um grande sofrimento para o adolescente, que encontra no grupo de iguais a sua referência de vida.

A adolescente, nessa nova condição, viu-se diante do desafio de ter que reaprender a andar, pois durante o dia não podia fazer nenhum barulho para não serem notados pelo pessoal que trabalhava embaixo - o que era difícil especialmente para ela, uma menina muito agitada e viva.

Teve que reaprender a falar, pois era uma menina faladeira, expressava o que pensava sem qualquer censura. A convivência com outras pessoas além de seus pais e irmã obrigaram-na a conter a espontaneidade excessiva que tinha por meio das palavras. Era comum ter que se desculpar com os outros por ter falado demais.

Escreve para Kitty em relação ao uso da linguagem: “É necessário falar baixo o tempo todo. Somente devem ser faladas línguas de pessoas civilizadas, portanto nada de alemão.” (p. 84).

A reaprendizagem do comer também aconteceu de modo radical, pois a comida disponível para o grupo era pouca. Anne era uma adolescente em fase de crescimento e o jeito era comer o que tinha e não o que queria.

O controle vesical e esfincteriano logicamente teve que ser reaprendido, pois no esconderijo todos tinham que esperar o período da noite para poder usar o banheiro.

Em relação a aprender a escrever/pensar, a jovem também teve que modificar o modo como aconteciam em sua rotina anterior, pois de um momento para o outro se viu sem os colegas da escola, tendo que estudar com seu pai, sua irmã e com Peter - o jovem que também morava com eles e que posteriormente tornou-se seu namorado. Em muitos momentos guarda/esconde o que realmente pensa.

Escreve para Kitty a vontade de recuperar sua liberdade e de ir à escola “quero uma casa nossa, onde eu possa me movimentar livremente e ter de novo alguém para me ajudar com o dever de casa, pelo menos. Em outras palavras, voltar à escola!” (p. 133). E, depois de algum tempo o quanto ela percebia que mudou: “Eu mudei de um jeito radical, tudo em mim é diferente: minhas opiniões, minhas ideias, a visão crítica. Por dentro, por fora, nada é igual.” (p. 365).

Tempos depois, ao libertar-se da mãe que a oprimia e criticava escreve à Kitty “Não pense em mim como uma menina de 14 anos, porque todos esses problemas me fizeram crescer” (p. 313). E revela que seu maior desejo é ser jornalista e também escritora famosa. “Teremos de esperar para ver se essas grandes ilusões (ou desilusões) irão se cumprir, mas até agora não sinto falta de assunto. De qualquer modo, depois da guerra, eu gostaria de publicar um livro chamado O Anexo Secreto.” (p. 326).

Anne não tinha ideia da importância que seu diário poderia ter no futuro, possibilitando que se pudesse conhecer o que eles passaram naquele confinamento e o quanto sua vida, sua adolescência, seria fonte de reflexão. O diário foi traduzido em vários países e até hoje é referência de leitura para adolescentes e adultos.

 

Concluindo sem fechar o tema

          Fase de transição entre a infância e a idade adulta, a adolescência é um momento “difícil e muito arriscado em que a ex-criança e futuro adulto se prepara para o acesso ao exercício pleno de sua autonomia”. (Parolin, 2001, p. 119).

          Adolescentes reais ou imaginados, como os jovens educadores, Malala, Alice, Holden e Anne dão-nos uma ideia dos muitos desafios enfrentados por eles, seja em relação à justiça social, respeito ao gênero, trabalho profissional, relações interpessoais ou preconceito racial.

O ambiente – familiar, escolar e social - em que vive o(a) adolescente precisa voltar-se à compreensão da questão “quem sou eu?”, oferecendo tempo, espaço e diálogo para que ele possa vivenciar o seu adolescer, a sua transição, de um modo a potencializar sua criatividade, autoria de pensamento e realização plena de capacidades.

          O contexto em que se dá o adolescer de um(a) jovem - país, cultura, etnia, recursos tecnológicos, crenças, momento histórico, política econômica, entre outros, precisam diferenciar o adolescente, ao invés de desqualificá-lo.

          É preciso lembrar que “nada se realiza no crescimento emocional, sem que esteja em conjunção à provisão ambiental, que tem de ser suficientemente boa” (Winnicott, 1975, p. 188), seja ela fornecida por pessoas na Inglaterra, no Paquistão, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Holanda ou no Brasil. Pessoas que possam facilitar a transição, por meio da oferta de espaços onde o adolescente consiga ser ele mesmo – conversa, atividade, diário, blog ou grupo de apoio.

 

Referenciais

Assis, Machado de. Falenas. In Obra completa. Vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Fernández, Alícia e Cruz, Jorge Gonçalves da. Curso breve à distância: Puberdade e Adolescência nos contextos atuais. Contribuições Psicopedagógicas. Módulo I e Módulo II. Versão virtual impressa. 2014.

Frank, Anne. O Diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.

Parolin, Isabel Cristina Hierro. Adolescência nossa de cada dia. In Weinberg, Cybelle. Geração Delivery. São Paulo: Sá Editora, 2001.

Rodulfo, Ricardo. In Fernández, Alícia e Cruz, Jorge Gonçalves da. Curso breve à distância: Puberdade e Adolescência nos contextos atuais. Contribuições Psicopedagógicas. Módulo I e Módulo II. Versão virtual impressa. 2014.

Salinger, J. D. O Apanhador no Campo de Centeio. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1999.

Winnicott, D. W. (1964) Deduções a partir de uma Entrevista Terapêutica com uma adolescente. In Winnicott, C. Explorações psicanalíticas. Artes Médicas, 1994.

Winnicott, D. W. (1961/1993) Adolescência. Transpondo a zona das Calmarias. In A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

Yousafzai, Malala. Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

 

Vídeos:

Alice no País das Maravilhas. Estados Unidos/Inglaterra: Disney, 2010.

Edukators. Alemanha: Atlanta Filmes, 2004.



[1] Mais detalhes podem ser encontrados no material do Curso à Distância Puberdade e Adolescência nos contextos atuais, da autoria de Fernández e Cruz, EPsiBA, 2014.

[2] Aprendizagens paradigmáticas: aprender a andar, aprender a falar, aprender a comer, aprender a controlar os esfíncteres e aprender a pensar/escrever. (Fernández, 2014a, p. 35). Mais detalhes ao longo de toda obra de Fernández: A inteligência aprisionada (1990), A mulher escondida na professora (1994), O saber em jogo (2001), Os idiomas do aprendente (2001), Psicopedagogia em Psicodrama (2001) e A atenção aprisionada (2012). 

 

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